sexta-feira, 24 de maio de 2013

Produção de texto de destaque do Terceiro Ano do Ensino Médio da aluna Gabriela Zuntini Martins. GÊNERO CONTO

JULGAMENTO DA MORTE

CAPÍTULO 1
-Ordem, ordem no tribunal! – Dizia o homem alto e gordo, de voz forte e cabelos de um branco fulgente, enquanto a madeira ressoava a cada golpe de seu martelo muito bem lustrado e envernizado, que em sua enorme mão de dedos roliços, se tornava minúsculo. Ao tocá-lo, parecia que o pequeno adorno em forma de circunferência romperia ao meio com a violência que estava sofrendo.
-Excelência?! –disse Oligar, Promotor de Justiça do Ministério-, suplicando o direito da fala.
-Mais nenhuma palavra, senhor! – repreendeu-lhe o homem do martelo , dando um tapa na mesa.
Todos silenciaram.
-Com a palavra, a defesa. – o gordo, tinha um nome, Humberto Van D’Linx, e uma barbicha de bode que lhe ia até o peito.
-Obrigado, Excelência. - agradeceu Vanderwell Mertozky, o advogado do réu. - Tenho algumas perguntas a serem feitas. Gostaria de chamar aqui a primeira testemunha: Edigar Antônio Marinho, ex-sofredor do mundo dos mortais.
O local era sombrio, mármore preto forrava o chão e as paredes, até o topo, onde não ficava o teto, mas sim, terra misturada com enormes rochas, que deixavam transpassar por suas menores frestas, algumas raízes entrelaçadas. Aos fundos, ficavam grossas e enormes portas de madeira, era ébano polido e de um belo brilho metálico. A iluminação, que não era das melhores, era proveniente de pequenas fontes luminosas encravadas ao longo das paredes.
Era, sem sombra de dúvidas, uma sala de tribunal, os móveis de madeira rústica, as divisórias para acesso à plateia, cadeiras, tudo, davam a certeza para quem quer que visse aquele lugar.
Duas silhuetas, que estavam trajadas até os pés com roupões e capuz negros, abriram as portas, eram os meirinhos, ou o que restou deles, seus esqueletos - geralmente, quando a pessoa não é má, mas também não deixou nenhum legado em vida mortal, como boas ações, por exemplo, elas são condenadas a esses tipos de trabalhos para compensar os dias perdidos da vida do mundo de cima, os mortais costumam chamar essas punições de “purgatório” - e, através da penumbra predominante do lado de fora, pôde se ver um esboço: uma luzinha roxa caindo aos poucos até que, ao tocar o chão, transforma-se, e como se em um passe de mágica, toma as formas de um ser humano. Então, lentamente e com o auxílio de um cajado de madeira retorcida que lhe ia do chão até a mão direita, a imagem decrépita do senhor de cabelos brancos e pele enrugada se revela por entre a escuridão e carece da ajuda de um dos esqueletos de capuz para seguir em frente.
Após uma breve caminhada, para em frente ao meritíssimo, que o chama pelo nome. Em seguida, seu Edigar Antônio Marinho desdobra a coluna curvada pelos anos e levanta a cabeça, é possível, então, ver a palidez de sua pele e morte em seus olhos de íris castanha, riscada como um velho vidro fosco. A boca torta e mal encaixada deixava à mostra a arcada dentária irregular, podre e cariada, era de causar medo, mas também, não era para menos, seu Edigar morrera com 107 anos de idade.
Foi lhe indicado seu assento e o advogado do réu pôs-se a falar:
-Vejam esse pobre homem, caros jurados! Morreu moribundo e sem ninguém, mas não porque quis, não, não, não! Seu Edigar teve oito filhos no mundo de cima, genros, noras, netos, alguns bisnetos e até mesmo dois tataranetos que chegaram a poucos meses do 2º andar – que é o andar dos despachos de almas para a vida, é de lá que vêm todos os mortais quando são concebidos-. Este homem é uma vítima da vida! Foi jogado em um asilo contra sua vontade e entregue aos maus tratos do lugar há 39 anos. Isso procede, senhor Edigar?
-Sim senhor. – respondeu tristemente o homem.
-Seu Edigar, depois de sua internação forçada, seus filhos e parentes visitaram-lhe alguma vez?
-Sim, nos três primeiros meses, eles me viam todos os finais de semana. No quarto mês, essas visitas começaram a ser um final de semana sim, um não, um sim, um não. Nos sétimo, oitavo e nono meses, perdi a conta das vezes que os esperei em vão. No décimo, não voltaram mais, e depois de 39 anos, tive a certeza de que jamais voltariam. Morri sozinho em meu leito, sem ninguém para me lamentar a morte.
-É verdade que durante todos esses anos o senhor chamou a presença da senhora Morte?
-Sim, é verdade. Minha agonia não tinha fim, as doenças teimavam em aparecer e a cada dia que passava minha tristeza e solidão aumentavam. O que mais me causou alívio e felicidade nesses últimos anos foi morrer.
-E o senhor atribui a causa dessa felicidade à Dona Morte, por ter te livrado da infeliz vida mortal?
-Sem sombra de dúvidas.
-E o senhor está bem hoje? Digo, agora, em sua nova casa?
-Estou muito bem! Vivo agora no Paraíso, lá no Andar Superior.  Disseram-me que fui um bom homem em vida mortal e que mereço um lugar agradável e feliz para passar o resto da eternidade.
-Muito obrigado pelos esclarecimentos, senhor. Sem mais perguntas, meritíssimo. – disse Mertozky.
Então, Van D’Linx oferece a voz à Oligar Matthew. Este dispensa a testemunha Edigar, que se levanta, sai e assim que toca novamente a penumbra, transforma-se em um pontinho fulgente roxo e se evade dali.
-Ora, excelência, senhores jurados, como podemos tomar como aceitável e oportuno para a defesa de Dona Morte, o depoimento de um homem com este histórico? Ele já tinha 107 anos, estava mesmo em tempo de morrer, na verdade, passou do tempo, o que toca o ponto crucial da história: Dona Morte tem se esquecido desses velhos, os deixando passar do ponto de poda, se ocupando com jovens, e cada vez mais, o Reino Inferior fica cheio e Dona Morte, por sua vez, não consegue dar conta de seu trabalho por completo e quem acaba tendo que fazer o despacho deles às outras dimensões, somos nós do Ministério.
Nosso mundo aqui de baixo tem se tornado cada dia mais perturbado, nossas mesas, se enchido com pilhas e mais pilhas de processos, tudo por causa de sua cliente, Senhor Mertozky. São processos de mortais desrespeitosos que pensam que aqui nós temos os mesmos costumes podres deles. Esse Tribunal é formado e existe para que cuidemos dos processos dos cidadãos do Reino Inferior, e já temos muito trabalho com isso, por sinal, e não para repartição e envio dos mortais ao submundo de Hades nem para tratar de roubos e estragos que alguns destes têm causado em sua estadia impertinente - esses jovens marginais, pensa-, já que pelo visto, Dona Morte deve achar divertido matar pessoas a “torto e direto” e tem feito isso em escalas exorbitantes ultimamente! – Diz Oligar.
Quando mortos, os seres humanos podem ter três destinos diferentes: Aos bons, o Paraíso - estes, simplesmente são enviados ao Andar Superior-. O “purgatório”, para os que não são nem maus e nem tão bons assim – estes já dão um pouco mais de trabalho. No Reino Inferior, o famoso purgatório dos mortais, são atribuídas tarefas a eles. – Já os maus... Estes sim dão trabalho. Eles são enviados ao Submundo de Hades, mas antes disso, deve ser feito um balanço de sua vida, assim, uma punição, tortura, sofrimento diferente é atribuído a cada um deles - e também em períodos de tempo que podem ser maiores ou menores: anos, séculos, milênios, eternamente... Enfim, tudo isso, é previsto como função da Senhora da Morte.
- Considero procedente – diz D’Linx –, temos mesmo muito a fazer por aqui em dias normais de trabalho.
-Evidentemente. – completa Oligar em seu tom mais jubiloso.
O advogado de Dona Morte permaneceu calado em sua mesa, visto que era verdade tudo o que o Promotor havia acabado de dizer e percebendo quanto havia sido infeliz em sua escolha pela testemunha Edigar. Dirigindo-se a um projetor no canto direito da sala, Oligar Matthew ordena que a luz cesse e liga o aparelho:
-Agora, senhores, lhes mostrarei algumas fotografias.
E, instantaneamente, as imagens começaram a correr no telão branco que havia sido içado por um par de Criaturas semelhantes a morcegos nada amigáveis, que permaneciam ali fazendo com que este ficasse suspenso no ar.
Primeiro, a fotografia de um bebê loiro, uma menina, e provavelmente seus pais ao seu lado, sorridentes. A imagem se seguiu de uma gravação da garotinha já um pouco mais velha, aprendendo a andar – Emília Cristina Mattos, três anos, morta por uma bala perdida; disse Oligar, apagando drasticamente as expressões de apreciação da beleza da garotinha dos rostos dos jurados e da plateia. – e, em seguida outra foto, ainda de Emília, mas desta vez morta, com um projétil alojado em seu ex-olho-azul direito que foi dilacerado.
Em sequência outra foto, um belo jovem negro esbanjando felicidade ao fardar os trajes do exército de seu país.
– Andrew Hebert Benjer, dezenove anos, morto num acidente de carro. O condutor do automóvel mortal de nome “caminhão” estava embriagado.  Andrew estava em sentido contrário, indo para a casa da mãe para um almoço de família após três meses sem vê-la, por estar em treinamento do exército. Após o choque, visto que o funcionamento do “caminhão” não foi comprometido, o condutor fugiu sem se quer prestar qualquer socorro.
E outra foto, mais uma, e outra ... – Kawanna Richard, vinte anos ... Regiane Lourenço, treze anos ... Lowel Umbana, cinco anos ... – nomes, nomes e cada vez mais nomes de jovens, de toda parte do mundo mortal, que morreram de formas trágicas e subitamente.
-Mortes sem motivo, sem explicação e sem ser em sua hora. Dona Morte é uma mulher sem escrúpulos, maldosa e sem compaixão pelos mortais. É um ser que não tem respeito pelo que faz e os executa com banalidade e desrespeito, de forma vil, e se quer tem a dignidade de ao menos concluir seu serviço e os despachar as almas no destino correto em vez de ficar os amontoando no nosso Reino. Os únicos mortais que são permitidos aqui são as Criaturas que cumprem pena designada, apenas estes!– diz Oligar satisfeito com a expressão que deixou nos rostos dos jurados. –Sem mais, meritíssimo.
-Sendo assim, declaro encerrada a sessão do período de hoje, continuaremos às nove horas do primeiro turno de amanhã – Diz D’Linx.

CAPÍTULO 2
Era escuro, continua escuro e assim será até quando houver vida e morte. No Reino Inferior não havia dia, o período desse nome no mundo dos mortais ali era chamado de primeiro turno, e o período que era chamado noite no mundo mortal, segundo turno.
Debaixo da terra, onde os raios solares não eram capazes de penetrar, pequenos Lumiscídimos voavam e deixavam seus rastros luminosos pela sala principal de audiências, um a um, ocuparam seus assentos nas luminárias encravadas às paredes. Foram os primeiros a chegar, o que já era de se esperar, já que, assim como os “meirinhos-caveira”, os Lumiscídimos serviam ao Reino Inferior como pena pela vida mal aproveitada na Terra, mas, nesse caso, como insetos de corpos luminescentes que passavam todo o tempo irradiando luz aos Inferianos de todo o Reino, seja em prédios públicos, em praças, ou em qualquer lugar, até pagarem seu débito e serem liberados para subirem ao paraíso.
A sala foi se enchendo e às nove horas pontualmente, o martelo de Van D’Linx estalou a madeira da mesa por três vezes, a sessão havia oficialmente sido iniciada.
O dia mais aguardado, com a presença mais esperada. Provavelmente, naquele período de tempo, as almas dos recém-mortos se veriam completamente perdidas, já que sua senhora estaria ocupada com o julgamento.
Após várias denúncias e argumentações do Ministério contra a ré, e do Advogado tentando a defesa da mesma, e de muitas  discussões, que também não valem a pena serem citadas, o clímax foi atingido na hora em que Van D’Linx pronunciou:
-Que mandem, então, entrar Dona Morte.
Todos, sem exceção, voltaram seus olhares para as grandes portas, na espera que estas se abrissem revelando a imagem de Dona Morte. Ninguém pronunciava palavra alguma e a sala encontrou-se isenta de todo e qualquer ruído. Não posso se quer dizer que podiam ser ouvidos apenas os sons da respiração dos Inferianos, já que não a possuíam.
Por mais que o Reino Inferior fique “debaixo da terra”, isso não quer dizer que se perfuradas as camadas terrestres se chegará a ele. O Reino Inferior, na verdade, é outra dimensão, paralela a dos mortais, constituída por seres que, em algumas características, assemelham-se a humanos. São espécies imortais, que só podem ser destruídas por ação de uma força muito maior, e com a existência de um motivo concreto para essa punição. Para ser mais exata, a terra está para eles assim como o céu, a atmosfera está para os mortais.
Um ranger interrompeu dramaticamente o silêncio fúnebre, as maciças portas se abriam para a escuridão enquanto uma fumaça fina e esbranquiçada invadia a sala do tribunal, brincando e rastejando pelo chão e tomando maior densidade enquanto se infiltrava por entre os pés da plateia e dos jurados. E, em meio ao nada, aparece ela majestosamente com seu manto da morte, tão negro como a escuridão que era deixada para fora da sala a cada passo calmo e firme que dava. A foice, de cabo longo como um cajado, foi puxada de volta por ela com um movimento de desaprovação quando, com um esticar de braço, um dos meirinhos tentou retirá-la dela.
As portas foram fechadas, Dona Morte não descobriu o rosto, muito menos olhou para os lados ou para trás durante o percurso até D’Linx. Chegou à frente do senhor Juiz e deu-lhe uma leve reverência com a cabeça, como um cumprimento ou um ato de respeito. Ocupou seu assento de ré e quieta, aguardou para que perguntas lhe fossem feitas.
Oligar Matthew adiantou-se e pediu a palavra ao meritíssimo, que lhe foi concedida.
Levantou-se de supetão como se alguém fosse adiantar-se dele e tomar seu direito à fala. Ajeitou a beca com tapinhas e pôs-se andar. Parou ao lado de Dona Morte, que sentada, tinha os mesmos um metro e cinquenta do baixinho de cabelos crespos e nariz vermelho.
-Bom período, Dona Morte. Diz Oligar em seu tom mais sarcástico.
A senhora de negro manteve-se imóvel e calada. Desgostoso de que sua provocação de nada adiantara, o senhor Promotor decidiu, então, ser mais incisivo:
-Dona Morte, creio que já é de vossa ciência o motivo de sua ilustríssima presença nesse Tribunal do Júri. Diga-nos, como é a sensação de acabar com as vidas dos mortais, tanto dos levados quanto dos amigos e familiares que ficam? E, melhor ainda, como é a sensação de adiantar a morte de mortais jovens que não estavam ainda em seu tempo de poda? Com certeza o vosso advogado, o senhor Dr. Vanderwell Mertozky deve ter lhe contado a respeito dos acontecimentos de ontem, o que é bom e nos poupa da perda de tempo que seria tal recordação.
Uma voz, que não deixava certeza de ser feminina ou masculina, pôs-se a falar.
-A Morte não adianta a morte, quem o faz são os vivos!
Para que a bala perdida acertasse Emília, que estava apenas brincando, outro ser humano teve que disparar o projétil sem rumo. Para que Andrew sofresse o trágico acidente, houve uma interferência alheia a sua vontade que não veio de mim, mas de um imprudente condutor, que dirigia seu caminhão sob o efeito de álcool, ele foi quem matou Andrew, não eu, assim como que quem matou todos os outros também não fui eu, apenas os busquei as almas.

Após o pronunciamento desesperado e de tom extremamente triste de Dona Morte, algo inesperado: ela retira seu capuz, algo que nunca havia sido feito antes na história, não pelo menos em público, puxou para baixo o longo roupão que cobria seu esqueleto há séculos, milênios talvez. Os panos caíram ao chão e, sobre os ossos ressequidos, começam a crescer músculos e sobre estes, pele brotava e se estendia por toda a extensão longilínea de Dona Morte.
Parte parecia assada, chamuscada, parte, dilacerada. Os cabelos da nuca não existiam mais e o restante do couro cabeludo revestiu-se de longos e emaranhados cabelos castanho claro. As cavidades vazias da face deram lugar a um triste par de olhos e um pedaço de nariz.
Ao fim da transformação, dona morte começou a encolher, e de seus mais de dois metros de altura, restaram apenas, no máximo, um metro e dez cabisbaixo e choroso, com marcas nos pulsos e tornozelos. Seus machucados pareciam arder como fogo, estavam em carne viva.
Não houve uma boca sequer, da plateia, magistrado, defensor e até mesmo procurador que se manteve fechada.
-Rosely Domme Vichy, - dessa vez, a voz era claramente de uma pequena e amedrontada menina - doze anos de idade mortal. Dois soldados do Império invadiram sua humilde casa, degolaram seus pais à sua frente com espadas longas de fio duplo, sem motivo algum – os olhos nostálgicos marejaram instantaneamente. – Depois, rindo e cambaleando, vieram em direção da pobre menina assustada, que tremia de medo , estava em choque. Sua vontade era de ataca-los, arrancar-lhes a pele com as unhas, mas os enormes homens eram mais fortes e mais rápidos. Pegaram a garota, acorrentaram-na e abusaram da pobre pequena. A golpearam na cabeça e ela desmaiou. Atearam-lhe fogo e Rosely acordou ardendo em chamas, mas de grilhões soltos.
Jurou vingar-se, dedicaria cada segundo de sua vida para tirar-lhes as deles, mas não de qualquer modo, não, tinham de sofrer.
Lembrava-se de seus rostos como se os conhecessem há anos, suas feições a atormentavam nos piores pesadelos.
Desfigurada, vestia-se apenas de preto, um roupão com capuz que lhe ia até os pés. Não sabia manusear espada alguma, mas cortava feixes de trigo como ninguém se utilizando de uma foice, então, fez da ferramenta de sustento da família sua arma.
Alguns meses se passaram até que tudo foi planejado, os dois homens barbudos e corpulentos de meia-idade tinham cada passo vigiado por ela sem que percebessem, até que, um dia, Rosely os encontrou às margens de um rio de águas calmas, despidos e fora do alcance de suas armas e armaduras, banhavam-se, e era, em sua concepção, o momento perfeito para a ação.
Sem pensar duas vezes, lentamente sai de trás do arbusto verdejante que a escondia e, sem lhes mostrar o rosto, grita para que a olhem.
Os homens assustaram-se ao ver o vulto negro e, ao retomarem os sentidos, foram mais rápidos do que ela, pondo um ponto final em seu plano de vingança: um dos homens destroncou seu pescoço e a jogou ao chão já sem vida.
A garota ficou perdida na escuridão da morte e, em sua mente, uma luz muito forte começou a brilhar.
“-Pobre criança – dizia a luz, ou o ser que a emitia – ainda não era chegada sua hora. Injustamente tiraram-lhe a vida e agora, serás a Senhora da Morte. Estás destinada a buscar as almas e encaminha-las à vida ou pena eterna. Dona Morte, menina Rosely, a tarefa que a ti foi atribuída é difícil, deves usar de compaixão e paciência aos bons mortais do mundo em que viveu e rigidez e imparcialidade aos maus. A senhora irá encaminhar-lhes as almas ao novo mundo em que permanecerão, sem que estes façam aparições indesejadas aos que ficaram. É teu, também, o dever de impor as penas a serem pagas pelas almas que julgardes necessário tal tratamento.
Mas menina, sua morte não será impune, vamos querida, abra os olhos e não apenas os leve as almas, os mate!”.
A luz tornava-se cada vez mais distante até que desapareceu por completo. Tudo aconteceu numa fração de segundos, mas a partir daquele instante, tudo mudaria.
Abriu os olhos e, de maneira imponente, a morta levantou-se a frente de seus inimigos que ficaram pálidos ao presenciarem, além de tudo isso, que ela crescia até praticamente dobrar de tamanho diante de seus olhos. Assim, as primeiras palavras de Dona Morte foram proferidas:
“- Orfeu e Montesjuan, soldados do Império, pelo frio assassinato dos inocentes Mélida Lux Domme Vicky  e Ossecar Domme Vicky, pelo estupro e assassinato de Rosely Domme Vicky, os sentencio a morte e os condeno  às piores punições dos campos de Hades, por toda a eternidade. E, então, podo-lhes a vida.”
E com apenas um golpe, transpassa a foice pela garganta de ambos, assim como fizeram com seus pais, e mesmo mortos, com as cabeças rolando e escorrendo as últimas gotas de sangue sobre a grama, suas almas continuaram gritando, e ainda hoje, dois mil e quinhentos anos depois, gritam nos campos de punição de Hades.
Rosely Domme Vicky, Dona Morte, eu!

Ao perceber que Oligar iria dizer algo, Rosely, então, completa:

-Não pedi para que tal tarefa me fosse atribuída, apenas a aceitei. É triste ver como o ser humano tem a capacidade de matar friamente várias pessoas que se quer conhecem.
Já estou velha e cansada. Não dou mais conta de meu trabalho sozinha, a violência tem aumentado muito no mundo mortal e eu não consigo mais realizar todo o processo de busca e despacho das almas.
Não sou vil, muito menos divirto-me com o sofrimento dos mortais, pois mesmo cansada, nesses dois mil e quinhentos anos tenho feito meu trabalho com a maior dedicação e respeito possíveis.
Meritíssimo, senhor Humberto Van D’Linx, apenas quero poder descansar em paz agora, isso é um apelo!

Ninguém podia acreditar no que acabara de acontecer, muito menos o senhor promotor, que até pouco tempo atrás, tinha a certeza de uma condenação, Dona Morte, a ré, acabara de passar à situação de vítima.

CAPÍTULO 3

Depois das considerações de Dona Morte e a desistência de efetuar mais perguntas do senhor promotor, os senhores jurados, promotoria, defesa e o meritíssimo se reuniram para resolverem de uma vez por todas a situação da pobre criança, mulher, senhora, que se encontrava no banco dos réus.

A menina morte estava apreensiva, temia pelo destino que lhe aguardava, sabia das acusações que lhe haviam sido feitas pelo ministério, e, por mais que tivesse emocionado com seu discurso, não tinha plena certeza do que lhe aconteceria.

Algum tempo se passou, não muito, mas para Dona Morte, que aguardava ansiosamente sua sentença, parecia uma eternidade, até que a porta, que ficava ao lado da sala de audiências e dava acesso à sala dos jurados, abriu-se.

Após saírem de dentro de lá, sentaram-se cada um em seu devido lugar e, em seus rostos sem expressão, Dona Morte não conseguiu encontrar nenhuma resposta.

-Senhora da Morte, Rosely Domme Vicky, o Tribunal de Justiça juntamente com o júri popular inferiano, considerando seu comovente depoimento como verídico, a livra da acusação de má execução de seu trabalho. A partir do dia de hoje, a vaga de Dona Morte será transferida ao senhor promotor Oligar Matthew, já que este foi o autor das várias acusações desnecessárias contra a senhora. Ele será rigorosamente supervisionado por agentes do Tribunal para que não cometa os mesmos atos que acusou como inaceitáveis quando efetuados pela senhora.

E, por fim, batendo por três vezes seu martelinho de madeira, D’Linx concluiu:

- Senhorita Domme Vicky,descanse em paz, o paraíso a aguarda!

A alegria foi tamanha, que o espírito da criança Rosely, que permanecia adormecido dentro do manto de Dona Morte durante todos aqueles séculos, saiu de seu casulo e tomou posse dela.

Imediatamente, brilhos dourados revestiram-na e transformaram sua aparência desfigurada na beleza que tinha enquanto viva, ela olhava para suas mãos, seu corpo, e vendo-o revitalizado, estampa o mais sincero sorriso de criança em seus lábios corados.

Saltitando, apressou-se pelo corredor em direção às enormes portas de ébano polido de brilho prateado, que se abriram e revelaram dois pontinhos roxos quase tocando o chão. Fitou-os em sua serena descida, pairavam como penas jogadas num céu sem vento. Logo chegaram ao final de seus trajetos e, ao tocarem o chão, transformaram-se num casal que, ao ver a menina, pareciam desacreditados de felicidade. Não puderam conter-se, há tempos que pais e filha não se viam, assim, correram para um abraço interminável que ha muito era aguardado.

 Os três, de mãos dadas, retornaram para a escuridão e tornaram-se novamente, pontinhos fulgentes que se elevaram até sumir da vista dos que ficaram dentro da sala de audiências.


Julgamento da Morte
 Gabriela Zuntini Martins
Abril/Maio de 2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário